Por: Roberto Pontual
1978
O CORPO É A TERRA
… o corpo é ou quer ser a terra. E a terra é também casa, abrigo,morada. Embora as aproximações não signifiquem daquilo que a terra e o corpo têm como fundamento comum – a fertilidade. (A artista em seu próprio corpo o está experimentando neste momento, prestes a trazer ao mundo um primeiro filho).
São pinturas que atingiram do ponto-de-vista puramente técnico, um grau de perfeccionismo exemplar, um virtuosismo irmão da sensualidade, espelho do prazer de trabalhar a superfície da tela como quem acaricia a pele que sobre ela vai surgindo, A tela é sua pele, e a textura do tecido seu arrepio. E se algum perigo há ou se anuncia, aqui, com a obra de agora, é que nela Pietrina parece ter chegado a um ponto ápice no problema e na técnica.
Em Pietrina o corpo esteve sempre presente, até hoje no centro de seu trabalho. Já participava dele em meados da década de 60, quando a artista acabara de concluir a disciplinada formação na Escola Nacional de Belas Artes. Era, no caso, uma amostragem mais sombria e conturbada da figura humana, que se contorcia em certos esgares característicos da mescla pop-expressionista então insistente. Pouco depois, o que havia de contorção dramática do corpo se foi acalmando, alongando, mergulhando em mares de flores e cores, sinuosos e languidos como nas formas “art nouveau”. Posturas que ainda tinham algo de crítico, uma vez que tratavam por dentro, com ironia, das “doçuras” de imagem impostas à condição de mulher-objeto. Neste tipo de pintura que se prolongou até o final dos anos 60, o corpo perdera sua inteireza: era visto sob perspectivas de grande angular, acentuando-lhe as partes e não o todo.
Daí para os pedaços, foi um passo. Tal como nos “closes” que os cartazes cotidianos agigantam, incitantes ao consumo, a superfície das telas de Pietrina começou um dia a povoar-se pacífica mas estranhamente, de dedos, mãos, antebraços, pé, pernas, dorsos – tudo, primeiro, solto contra um cálido fundo vermelho-sanguíneo, neutro em termos de indicação de tempo e lugar, isento de cenário; mais tarde, esses mesmos elementos vieram se abrindo ao ar pleno do planeta , se estendo pela paisagem, sendo a paisagem. A face, com seus traços a permitir o movimento para dentro, o ingresso na intimidade do corpo, ali deixava definitivamente de ter vez. Era, mais do que nunca, a vez da pele, da entrega do corpo ao mundo. O corpo em Pietrina, serve de ponte com o que lhe é de exterior:funda a paisagem. A pele do corpo nos leva a transcendê-lo, de dentro para fora.
A uma série de pinturas executadas por volta de 1973, Pietrina intitulou Evaterra, ali a pele do corpo correspondendo à pele da terra. Propunha com isto a sutileza de inverter um velho princípio: já não era a terra que se dava como fonte do corpo., mas o corpo que se apresentava como matriz da terra. A paisagem era o corpo. Esse discurso prossegue, intacto na série recente que ela agora nos mostra.. Trata, cada vez mais claro, ter chegado a um ponto de ápice no problema e na técnica que lhe vêm atraindo anos a fio. Ponto a partir do qual começam as ameaças de repetição e esvaziamento.
Mas isto são conjecturas de sinal negativo que a excelência da pintura atual não merece ainda ver desdobradas. Justiça maior faríamos a ela se nos interessássemos estritamente pelo que ali se concretiza no momento, inclusive no prolongamento coerente até a área da escultura. Quanto a este último aspecto, a verdade é que a artista soube perceber que os volumes virtuais de seus agigantamento corpóreos continham, continham, latentes uma inevitável dimensão escultórica. E encontrou saída adequada para a evidência na produção de dedos e perna e seios multiplicados em metais ou madeira. Só não diria que alcançou o mesmo acerto no novo múltiplo, “Umbigo” recém lançado: sua forma não foi feliz na capacidade de referir imediatamente a parte do corpo humano posto em destaque.
De regresso à pintura, restam algumas observações complementares a anotar. Primeiramente, a de que, correspondendo à relação corpo/terra, pele/paisagem, há um outro elo a considerar nessa “ilhas humanas”de Pietrina Checcacci: aquela que se dá no caminho de volta da cultura à natureza. Quadros existem na série com resíduos de civilização, objetos e modos de nossa urbanidade – a lata consumida de cerveja; os panos quase farrapos, favorecendo pudores, encobrimento do corpo, ocultações da paisagem. Mas são poucas as obras que assim se comportam, como lembrança de quanto o corpo hoje se vê afastado de sua natureza, de sua condição também de terra. A maioria das telas atuais de Pietrina registra a desembocadura final do corpo na paisagem. As coxas, os joelhos, os bicos de seios, as nádegas, os dedos, os ventres, repousados ou retesados, são acidentes de uma geografia reconhecível. Ou, se quisermos exatamente o contrário: esses montes baixos, areias e picos são as parcelas do corpo de que eles se vêm fazendo. Como no poema de Fernando Pessoa:”Seus seios altos parecem /(Se ela estivesse deitada ) / Dois montinhos que amanhecem /Sem ter que haver madrugada”.
Em segundo lugar, precisamente nas pinturas do corpo-paisagem em plenitude, sem qualquer interferência dos dados e resíduos de cultura, as forças elementares da natureza podem expandir-se em liberdade. E nesta expansão ressurge o jogo eternamente primordial dos quatro elementos. Agora, já não é só a terra que ali tem lugar, pele do mundo e do corpo. Ela, a terra, ou ele, o corpo, mergulha na água – água que vem da atmosfera límpida ou das nuvens de peso crescente. Avermelhadas e cálidas , as ilhas recebem a luz e o calor de um Sol (umbigo) ausente, mas cujo fogo insiste em iluminar por fora e animar por dentro o corpo e a terra, esquentando o seu suave desmembramento e a sua contida florescência. Terra, água ar e fogo – o nosso giro está em processo. E o corpo que temos é o cordão umbilical a nos unir com o universo, a nos equilibrar no universo.