Por: Walmir Ayala

O corpo é um planeta, é um mapa, é uma paisagem, é uma montanha, é um universo. Pietrina Checcacci em seu laboratório interior de criação, um dos mais fecundos e instigantes da arte contemporânea, tem percorrido esta trilha mágica. Sua pintura é frequentemente lembrada pelos “dedos”, elementos anatômicos que se tornavam independentes do todo, para provocar no espectador uma desconfortável sensação de metamorfose, de espelhamento da paisagem do homem.

Sua meta tem sido sempre a figura humana, esta usina de sonho e revelação cuja forma desafia a própria divindade ao se instituir, biblicamente, como um símbolo da Imagem e Semelhança. Na evolução técnica e formal de Pietrina esta figura humana partiu de sua inserção no mundo social , para transformar-se no mundo em si, projetando-se a seguir numa partícula do sistema cósmico. No trabalho de sua primeira fase, no final da década de 50 , fixava seu prazer na matéria da pintura e denunciava os limites terrestres da vivência popular . Já em fase subsequente rompia este limite, sondando o orbe místico, permitindo já certas contorsões anatômicas cuja tensão resultaria nas sínteses posteriores do planeta corpo.  No final da década de 60 havia um retorno à denúncia , sem a postura cândida do social explicito, mas com as armas da fantasia , das alegorias sobre o erótico e selvagem, sempre colocando em foco as fraquezas humanas .  No final da década de 60 uma aragem pop invade estes cenários , ao mesmo tempo que tinta vinílica vai especificar uma pintura sem veladuras nem transparências , mais sobre o clichê , o frontal , a entrada do vídeo   de TV , como na vida corriqueira do espaço urbano .  É exatamente neste período que surge a paixão pelo detalhe .   A volta à tela e os toques do kitsch mostram o espaço invadido por volutas , estamparias populares , pintadas ou coladas , provocando o contraditório dos corpos que começavam a iluminar-se de uma natureza ideal, ao lado de ambientes triviais, integrados neles.  Mas a força do corpo foi rompendo a cenografia , e o prazer de descobrir o efeito tátil e desmistificado da forma , definiu o que seria o grande delírio pictórico de Pietrina Checcacci.

Neste momento é como se Pietrina tivesse descoberto a carne da pintura, a sensualidade liberada e clínica , a transparência do ideal helênico de forma inédita .  Pode se dizer que arrebatou o momento de participação do observador , que comunga daquele enigma de dedos que penetravam na água e se mostravam antes e depois tocados pelo mistério da nova natureza, em cor e distorção , ou de pernas ,pés , braços , espáduas , que se enovelam num sereno contorcionismo , como aliens da ficção cientifica .  Estava palpitante neste momento o embrião da escultura , que seria mais tarde uma de suas manipulações mais intensas .  O complexo cromático de antes vai se atenuando , a monocromia assume o primeiro plano , e a voluminosidade , o tromp-oeil da terceira dimensão , vão criando ritmos novos, sensações óticas de grande efeito emotivo .  Foi na verdade o momento consagrador de Pietrina Checcacci , o que ela chamou de “ O tempo de terra” , no qual o corpo foi sendo generosamente a terra .  O enfoque do corpo como paisagem , especialmente da mulher , não é inédito , mas na pintura de Pietrina  Checcacci assume empostação inédita .

Não é uma visão romântica , ou simplesmente alegórica , é uma versão genesíaca , da integração do instinto vital a um organismo universal .  A passagem  destes transes assume um caráter visceral , os ventres , coxas , pernas , seios, todos montanhosos , se crispam e auto-agridem forjando as “ carnações” .  Perde-se a visão paradisíaca  , e a carne purga seu lado agressivo, ou revoltado , absorvendo o bem e o mal num orgasmo de expulsão do paraíso .  Estamos já em plena década de 80 , onde muitas convulsões e partos precoces acontecem na arte brasileira , entre eles a discutível geração 80 .  Pietrina assumi um patamar com um retorno equilibrado , o sangue assoma à pele , a mansidão da fase anterior dá lugar a novas denúncias e finalmente o corpo perde seu destino terrestre e levita como um satélite pulsante , assumindo a grande solidão .  A paisagem transforma-se então na terra inteira , na nova terra .  A pintura macia e luminosa assume outra vez o espaço , agora contaminada de pontos vulneráveis, de rasgos de paisagem real ou cúpulas aéreas de pulcra transparência .  O novo planeta , ainda corpo, parece pairar à espera da grande fuga, da projeção para um destino maior.  Pietrina confessa-se proprietária de oitocentos anos de vida , ao confessar sua obstinação de sempre recomeçar .  No ambiente de trabalho há uma multidão de esculturas e múltiplos , de serigrafias fascinantes , algumas feitas sobre tela .  A insistência na seriação é uma de suas qualidades , o desejo de franquear o acesso de seu mundo a um número sempre maior de fruidores , a compreensão muito lúcida de um dos grandes vôos da arte contemporânea , qual seja o de democratizar-se . Isto sem concessão ao que o múltiplo possa ter de belo , de materialmente perfeito e visualmente valioso .  Em bronze , fibras e poliéster , libera frequentemente um lado jocoso , cria formas que se iluminam e convergem para a beleza em si . Aderiu ainda ao designer dissimulando sob formas sofisticadas o lado utilitário .    Em pintura muito recente acrescentou formas tridimencionais , tentando uma subversão da linearidade da parede .Hoje, como no início de seu grande e abrangente processo , Pietrina se coloca como uma semeadora . Aderindo aos recursos da tecnologia , não abdica da postura humana , mutante e aberta , pela qual recicla a energia do fazer , entre os pólos de beleza e da decadência . Esta compreensão , esta capacidade de tocar em essências tão universais da existência , marcam a dimensão arquetipica do seu trabalho , transformando num registro clássico , ainda uma vez, o nosso ritual de passagem.

 

Walmir Ayala

Dezembro de 1990

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